Tanto em 1964 quanto após a eleição de 2022, oficiais militares do Exército se insurgiram contra a soberania popular vinda do voto. Em ambos os casos, revelou-se o entendimento comum de militares de que eles devem definir o destino do país à revelia das escolhas populares e tutelando a sociedade civil.
Essa seria uma das principais semelhanças entre os dois episódios, segundo cientistas sociais consultados pela Agência Brasil. Para os especialistas, os dois casos reforçam a necessidade de reformas nas Forças Armadas.
Entre as principais diferenças entre os episódios históricos, estão a falta de coesão dos setores empresarias para o golpe após a eleição de 2022 e a falta de apoio internacional, especialmente do governo dos Estados Unidos.
O historiador Manuel Domingos Neto, professor aposentado da Universidade Federal do Ceará (UFCE), destacou que, em ambos os episódios, os militares atribuíram a si o direito de definir o destino da nação.
“Nós temos o espírito corporativo que diz que cumpre aos militares, em particular ao Exército, conduzir o destino do país. E essa sensação é a mesma em 1964 e 2022. Ela é persistente. O militar é criado nessa noção que ele recebe na sua formação”, destacou Neto, que pesquisa a história militar no Brasil.
A professora de história do Brasil da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Carla Teixeira destacou a rejeição de comandantes militares de aceitaram a liderança de um presidente civil escolhido pela população.
“Em 1964, assim como em 2023, temos um arranjo de grupos de poder que tentam barrar a vontade popular. O atual comandante do Exército, o general Tomás Paiva, revelou que o resultado eleitoral não foi o que os militares gostariam. Ainda que nem todos os oficiais tenham aderido ao golpe, é fato que eles não aceitavam a figura do Lula”, explicou.
Para Carla Teixeira, doutora em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a conjuntura desfavorável evitou que todos os oficiais aderissem ao golpe. “Dar o golpe é fácil, sustentar o governo depois é que é o problema. Os comandantes militares perceberam que não havia apoio na sociedade e no estrangeiro”, disse.
Protagonismo do Exército
O cientista político Rodrigo Lentz, que estuda o pensamento político do militar brasileiro, destacou o protagonismo dos oficiais militares do Exército como importante semelhança entre os dois episódios.
“Em ambos os casos, os protagonistas foram oficiais militares, e não praças, e da sua maioria do Exército. A segunda principal semelhança é que esses militares se insurgiram contra a soberania popular aferida pelo meio eleitoral, que é o método legítimo para formação de governo”, comentou.
Outra importante semelhança entre os episódios foi o forte apoio dos setores do empresariado agrário. “A gente teve em 2022 um amplo apoio dos setores agrários à tentativa de golpe. Como ficou claro depois, nos inquéritos, que o pessoal do agro que pagou os acampamentos, como o próprio Mauro Cid [ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro] delatou”, disse a professora Carla Teixeira.
Inimigo interno e neoliberalismo
A doutora em história pela UFMG Carla Teixeira acrescentou ainda que, assim como em 1964, esse grupo que quis se perpetuar no poder construiu a ideia de inimigo interno a ser combatido.
“Em 64, havia, no âmbito da sociedade, a ideia de uma ameaça comunista. E hoje a gente tem a ideia do marxismo cultural, da ideologia de gênero, do globalismo, os professores, os cientistas, os artistas, enfim, todos esses grupos que foram alçados para o lugar de inimigo pelo governo Bolsonaro”, acrescentou Carla Teixeira.
Outra semelhança é o projeto de instituir uma política de corte neoliberal como política de Estado. “Durante o governo do Castelo Branco [1964-1967], foram instituídas várias medidas liberais que levaram a um aumento da desigualdade social, como o fim de direitos trabalhistas, a exemplo do direito à estabilidade no emprego”, avaliou.
A historiadora ressaltou que, no governo Bolsonaro, as políticas de corte neoliberal eram representadas pelo então ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo Projeto de Nação: o Brasil em 2035, lançado pelo Instituto General Villas Bôas, entidade que leva o nome de um dos militares de maior prestígio nas Forças Armadas.
“É um projeto que, basicamente, institui o neoliberalismo como política de Estado. Haveria a cobrança de mensalidade nas universidades públicas, cobrança de mensalidade no SUS [Sistema Único de Saúde] e assim por diante. Isso revela muito essa adesão dos militares a um projeto neoliberal”, completou.